O Massacre de Cólua

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angola_1961Neste excelente livro o autor, tenente-coronel António Lopes Pires Nunes, relata minuciosamente o que se passou na guerra do Norte de Angola. Sugerimos vivamente a sua leitura a todos aqueles que estão interessados em conhecer estes acontecimentos.

No dia 30 de Março, o BCaç Event estava, como se disse, reunido em Aldeia Viçosa, onde recebeu ordens do Quartel General para acelerar a marcha para a Úcua e Caxito (3a fase da operação) mas, por uma série inesperada de acontecimentos, a progressão só foi iniciada a 4 de Abril.

Um civil de Cólua, que escapara por mero acaso ao massacre de 15 de Março, por se ter deslocado a Carmona a tratar de negócios, tinha sobrevoado a sua pequena povoação, situada a NW de Vila Viçosa, e observara que nas ruas e nas varandas das casas havia muitos mortos, entre os quais lhe parecia reconhecer a sua mulher. Pedia protecção para lá se deslocar a fim de proceder ao enterro das vítimas do assalto, para o que o comandante da 7a CCE nomeou um pelotão da sua companhia, que partiu para Cólua com uma viatura de reparação de pontes. Esperava-se que esta tarefa durasse o máximo de dois dias mas, como este prazo fosse largamente ultrapassado, sem haver qualquer notícia, via rádio, do que se estava a passar, o próprio comandante da companhia, o capitão Castelo da Silva, acompanhado pelo tenente Jofre dos Prazeres, dois soldados e um cipaio foram num jeep ao encontro do pelotão. Este demorara mais do que o previsto porque as pontes estavam muito danificadas, e, no regresso, cruzou-se com o jeep que o procurava. O capitão Castelo da Silva ordenou ao pelotão que continuasse a marcha e disse ao alferes que ele e os seus acompanhantes ficavam ali mais algum tempo, perto da sanzala Cólua. O pelotão chegou a Aldeia Viçosa mas o capitão não aparecia o que prolongou a angústia que se apossara de todos havia já três dias, voltando o alferes ao local, na madrugada seguinte.

Já em Cólua, o oficial comunicou por rádio que encontrara os corpos horrivelmente mutilados dos cinco militares e que o jeep e as armas tinham desaparecido. Perante esta informação, ali se deslocou uma nova patrulha auto com o próprio comandante do batalhão que foi também emboscada. Os amotinados isolaram a viatura dianteira e caíram sobre a secção da vanguarda ferindo logo o sargento e os restantes elementos que tentaram esconder-se no capim, mas foram agarrados e esquartejados. Dois soldados sobreviventes, um dos quais gravemente ferido, que conseguiram fugir e foram detectados por um avião da Força Aérea e socorridos, contaram como eram lancinantes os seus gritos de morte.


Orgãos genitais de um soldado português (foto Horácio Caio)

Nas declarações prestadas, em 5 de Outubro de 1961, no Posto Administrativo de Aldeia Viçosa, pelo bailundo Severino José que fora obrigado a acompanhar os terroristas desde o dia 15 de Março de 1961, encontram-se os seguintes trechos, absolutamente horrorosos:

“(…) Que do massacre de Cólua nada sabe além de cozinhamento dos quatro militares a quem cortaram os dedos e as “matubas” (testículos) pendurando-os nuns paus para secarem (ver foto) (…)”

(…) O Bomboco e, sobretudo, o Simão Lucas organizaram autênticas cenas de canibalismo começando com os quatro soldados brancos agarrados no Cólua, obrigando os bailundos a cozinhá-los e a entrarem no festim. O pessoal de Quiguenga conseguiu agarrar um sargento que fugira do Cólua e cozinhou-o, tendo o mesmo sargento que era gordo dado muito azeite e carne (sic). O soldado morto há poucos meses atrás foi levado para o Cólua e igualmente cozinhado, tendo o declarante participado no festim, tal e qual como os outros bailundos, pois que os que se negavam a isso eram mortos e igualmente comidos, tendo o declarante assistido à morte de pelo menos vinte e cinco bailundos e que o declarante teve igualmente de comparticipar. Desde a primeira hora todos os que morreram, quer brancos, quer bailundos, quer naturais da terra, foram comidos e jamais se procedeu ao seu enterramento, pelo menos no que diz respeito ao Cauanga-Cólua-Quinguenga, embora saiba, por ouvir dizer, nas outras partes se faz a mesma coisa.

(…) “A descrição é tão elucidativa, que não merece o mínimo comentário.

O Bat Event, que assistira já a muitos horrores, ficou inesperadamente a viver um dos mais violentos e o tocava directamente, numa altura em que normalmente deveria estar já em Caxito. Enterrar 30 cadáveres de homens, mulheres e crianças, barbaramente esquartejados vários dias antes, .transportar para a morgue de Carmona um capitão, um tenente, um sargento, dois praças e um cipaio administrativo e saber que outros seis militares tinham desaparecido e haviam sido também selvaticamente assassinados foi uma tragédia indescritível.

O massacre de Cólua, para além do seu horror, permitiu tirar algumas ilações. Os sublevados haviam perdido o respeito às forças militares, que não podiam mais deixar-se surpreender daquela forma e todos tiveram a percepção de que, se inicialmente apenas dispunham de armas gentílicas e algumas que haviam roubado durante os assaltos, em geral caçadeiras, tinham agora armas de guerra. Sentiu-se ainda que o terrorismo ia passar à guerrilha lenta mas seguramente. Com as armas do jeep do capitão Castelo da Silva fizeram a segunda emboscada e, com as capturadas nesta, tinham agora um potencial de fogo assinalável, capaz de surpreender outra força armada pequena e descuidada.

A guerrilha ia crescer alimentando-se de si própria e do exterior, e esta constatação deve ter pesado na avaliação que se fez na Metrópole, onde os partidários de Botelho Moniz teriam colhido os últimos argumentos, antes de afrontar Salazar. Se numa ignota e insignificante aldeia de mato morreram 30 civis e 11 militares não era seguramente uma guerra de catana e de Secção que as forças militares portuguesas enfrentavam e poderia avaliar-se já o que esperava Portugal se insistisse em continuar a querer resolver o problema pela via armada. Já foi dito que Salazar enfrentou argumentos deste tipo assumindo ele próprio a pasta da Defesa e iniciando, imediatamente e sem mais delongas, a mobilização militar do país para Angola.

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